quarta-feira, 16 de maio de 2007

Doce de pressão

PshSHshSHshSHsh....

A válvula da panela de pressão balançava em elipses, quase rebolava, o som chiado aumentava e diminuía num ritmo constante, era quase um vou-não-vou. Dentro da panela, duas latas de leite condensado e muita água.

A vontade crescente nos últimos dois dias era doce – muito doce. Na verdade, queria se lambuzar escondido. Sentada à mesa da cozinha, ela esperava o resultado da panela, imaginando que ia comer o doce de colher e quase civilizadamente, já que nesses dias não é civilizado ter acessos de gula. O gato também olhava a panela, mas não via. Na maioria das vezes era isso que ele fazia, olhava sem ver, olhava através. Quantas vezes ela quis aprender a olhar como o gato, mas esse, assim como todos os segredos felinos, era insondável. Tinha dias, como este, do doce, em que ela se resignava em olhar para a vida e nunca através dela. Não nascera gato, e isso era um bocado triste.

Trinta e cinco minutos era o tempo de que precisava para satisfazer seu desejo. O chiado da panela embalava sua espera e remetia a tempos antigos – sextas-feiras santas quando o cheiro insuportável do bacalhau na pressão invadia a casa da avó em manhãs que pareciam intermináveis. Segundas-feiras modorrentas quando o peso de começar tudo de novo era associado à panela de feijão que a empregada colocava no fogo, e que devia durar a semana inteira. Domingos festivos em que a carne assava, a massa era escorrida e os primos faziam barulho, muito barulho. Tudo era bom nesses domingos, a felicidade durava até as cinco da tarde.

Nem sempre a panela funcionava bem, e naquele dia calhou de hesitar. A válvula travava de vez em quando, para - logo depois de segundos de suspense - retomar o ritmo. Deve estar escapando ar demais, pensou. Nada que um palito de fósforo não resolva, e foi num dos buraquinhos da válvula que o palito se encaixou. Tudo começou a rodar como deveria, num ritmo constante e sem sobressaltos. O pauzinho deu jeito.

Fluoxetina também dá jeito nos sobressaltos. Era assim, já há algum tempo. O bendito fruto da Eli Lilly dormia a seu lado no criado mudo, e era a porta de entrada das manhãs em que abrir os olhos era quase um desgosto. Não porque o sonho lhe trouxesse coisas boas, mas porque o dia necessariamente lhe apresentava às claras o espelho do banheiro e os espelhos da rua. Não gostava do que via, em si e nos outros. Sua vontade era apontar o defeito do mundo, mas isso era feio. Assim, restava-lhe gastar boa parte de seu tempo e de seus pensamentos apontando para si mesma seus defeitos. Na verdade, sentia que não era a única a fazer isso. Muita gente lhe ajudava nessa tarefa, era o que pensava. A fluoxetina era uma companheira fiel, amenizava o impacto do erro onipresente e às vezes até lhe ajudava a esquecer que não era perfeita, nem jamais seria. É claro que quando o esquecimento não vinha e mais alguma ajuda era necessária, o açúcar emprestava certo bem-estar e lhe dava momentos de alento.

Não que pensasse em pôr fim à tristeza. Bastava-lhe uma convivência tolerável com os momentos de dor, pois acreditava que acreditava ser possível administrar a falta de alegria na vida. A vida de todo mundo é mais ou menos, afinal de contas. Controlar os altos e baixos, manter-se na faixa do meio é possível, principalmente com a ajuda dos fármacos e dos refinados. Nessa verdade ela se mantinha em pé.

O som do chiado era tão persistente e tão constante que a vontade que lhe deu foi de esperar no chão. O frio do ladrilho compensava o calor da fervura da panela que emanava ao redor. Deitada, imaginou que o teto da cozinha era o céu, e ali tudo seria possível, comeria o leite cozido deitada no chão, lambendo a colher de olho na eternidade. Durou um minuto e meio esse devaneio, interrompido pela explosão. A válvula da pressão foi ao seu limite, e a tampa da panela foi arrojada para cima, fazendo um buraco no teto. Uma chuva de doce de leite pontilhou todas as paredes, teto, geladeira, armários. Depois da explosão, o que se ouvia era quase um silvo – como o fim de um suspiro guardado há tempo demais. No chão, ela não se moveu. Olhos abertos, contemplava o céu. O buraco feito pela tampa era como uma lua, incandescente. As estrelas salpicadas ao seu redor pingavam, como num conto de fadas. A válvula ela não viu mais e, embora soubesse que a causa do imprevisto foi o palito de fósforo enfiado num buraco onde jamais deveria ter estado, não sentiu nenhuma culpa. Abriu a boca e esperou que alguma estrela lhe adoçasse a língua. O gato, debaixo da geladeira, olhava para ela – e não através. Suas pupilas pareciam dilatadas para sempre.

A eternidade é doce e estrelas não engordam.

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