quarta-feira, 5 de setembro de 2001

De uns dias pra cá, ele só anda curvado. Não sei se é por algum motivo concreto, físico, ou se é mania, mesmo.
A impressão que dá é que ele procura por alguma coisa bem pequenininha, que se perdeu num vão entre as pedras portuguesas.
Talvez, de tanto dormir na calçada, tenha aprendido a língua das pedras e, ao invés de procurar com os olhos, cata segredos com os ouvidos.
Ele fala sozinho de monte e inventa umas modas que eu considero verdadeiras instalações: amarra sacos de lixo nos respiradouros da calçada, ordena objetos catados na rua com uma lógica que só ele entende e fica olhando pra eles durante muito tempo, cuidando para que nenhum passante distraído esbarre e estrague tudo que é perfeito. Tem dias em que me pergunto se as montagens de coisas, ao lado da banca de jornal, não fazem parte de algum ritual secreto do povo das ruas. Já o flagrei de varinha na mão, andando em círculos ao redor de cacarecos. Sabe-se lá.
À primeira vista, pensei que ele fosse um mendigo como tantos outros. Com a convivência (nos encontramos todos os dias, afinal) fui percebendo que não é só mendicância a sua realidade. Há um viés, ali. Para muitos, pode ser interpretado como alienação e loucura. Até mesmo para mim, era disso que se tratava, até hoje.
Mudei de idéia.
O caso é que estava comprando empadas numa carrocinha aqui perto de casa, quando ele passou. Percebi seu olhar para a vitrine do carrinho e depois, para o vendedor. Por fim, pararam em mim.
Impossível ficar indiferente. Ele murmurou alguma coisa ininteligível, que eu compreendi - claro, sou cristã, decente, compassiva, politicamente correta e ainda por cima, trabalho em ONG - como um pedido.
- Dá uma pra ele - disse ao vendedor.
Feito.
Ele olhou fixamente para a empada por um tempo, como se avaliando a conveniência de comê-la naquele momento e ali. Depois olhou pra mim, por uns minutos. Impossível descrever o que eu vi.
Era a mim mesma, que eu observava. Não achei estranho ser o homem encurvado à minha frente. Aposto que ele também não achou estranho ser a mulher empertigada.