terça-feira, 18 de setembro de 2001

Eu estava sondando os preços dos palmtops (que é a minha próxima empreitada no universo dos gadgets tecnológicos, eu, que não sei programar o videocassete, pretendo escrever na tela de cristal líquido com um pauzinho de laranjeira pós-moderno) quando abriu uma janela totalmente esquisita no meu monitor.
A primeira coisa que imaginei foi que havia feito uma trapalhada e baixado um novo screensaver com uma animação de que até Ele duvida. Uma carta (feito aquelas, amarelinhas, do ICQ - só que bem maior e vermelha) piscava sem parar e uma animação sugeria de um jeito meio ameaçador: abra-me....abra-me...Entre as palavras, uma espiral preta rodava. Catifum.
Muito bem. Beijei a imagem de São Judas Tadeu que carrego sempre comigo e cliquei duas vezes no envelope vermelho. Abriu uma sala de chat. Lá estávamos, eu e ele.
- Bem vinda...
- Oi, tudo bem? De onde vc tc?
- Não vem ao caso. Que bom que você aceitou meu convite para o chat.
- Legal, ficaria melhor se você se apresentasse.
- Claro, me desculpe...eu sou O Outro.
- Francisco Cuoco?
- Hehehe..vc lembra, é? Também gostei dessa novela. Mas não sou o Cuoco, não.
- Ok, continuo na mesma. Vc é o outro quem?
- O Outro. O transgressor da sua ordem. O da esquerda, o da mão que segura o garfo. O distante, o exilado, o diferente. Compreende?
- Tá insinuando que é o Capeta? (nem devia escrever essa palavra, que não é de bom agouro, é que nem "azar", que a gente não deve falar nem escrever, pra ver se risca do mapa)
- Acho que me dão muitos nomes por aí, mas não atendo por nenhum deles. Digamos que eu seja só o Outro. Curiosamente, é em mim que muita gente faz morada de seus capetas.
- Tô entendendo. Não sou burra nesses assuntos, sabe? Minha avó é Rosacruz, meu tio é pai-de-santo. Eu mesma ando num canto e noutro. Diga lá, vc me procurou pra que? Aliás, interessante essa sua abordagem via Internet.
- A Rede não deve ser para todos?
- De fato. Não ia ser você um excluído, um sem-acesso, um sem-tela.
- Absolutamente. Estou aqui por gentileza. Realmente, não tenho acesso - livre, gratuito, nada disso. Meu território é a própria exclusão. Imaginei que você soubesse disso. Mas tenho percebido que ultimamente, o que aparece no seu monitor vira sua realidade e julguei (ops) que esta seria uma forma eficiente de chamar a sua atenção.
- Bacana, boa estratégia. Agora, vamos à vaca fria. Me diga, pra que você quer minha atenção?
- Quero ser integrado. Quero que você faça um esforço para relativizar as diferenças que nos separam, para cooptar uma parcela do que represento. Quero que você abra mão de algumas certezas, que questione-as à luz das possibilidades que venho oferecer, quero que você reavalie alguns de seus conceitos.
- Deixa eu ver se entendi: você quer que eu abra mão de um pedaço de mim, de uma parte da minha história, que eu me desfaça dos valores que levei quase 35 anos pra construir, à custa de muita porrada, você quer que eu deixe de acreditar em coisas nas quais meus pais acreditaram, em coisas que eu estudei, li e refleti até chegar ao ponto de acreditar, em tudo que é mais precioso pra mim - idéias, filosofias, crenças pessoais, herança - pra ceder espaço pra você??? Que eu nem sei quem é??? A troco de que? Que conversa é essa? Tá me estranhando? Será que você sabe com quem tá falando?
You have mail!
Nova janelinha. Cliquei duas vezes, ato impensado, quase vício.
Notícias do mundo.
Cliquei correndo para a janelinha da sala de chat, procurando o Outro pra ver se dava tempo de uma explicação, uma busca de reconhecimento, uma reavaliação da minha postura, tão irrefletida.
The user "O outro" left the chat.
Cliquei no quadradinho com um X e fechei a sessão. Quem será que era esse outro?
Paciência...bobagem. Outra hora ele aparece e eu penso nisso de novo. Entrei no site da CNN pra saber mais sobre o atentado terrorista, cuja notícia acabara de chegar. Isso sim, merece minha atenção. Dane-se o Outro.