sábado, 29 de setembro de 2001

Há pessoas cuja alma não aceita ser engaiolada.
Há outras, como eu, que amarram as asas da alma,
violentam-na para dentro das grades e mantêm-se vigilantes
à porta da gaiola - aberta.
Fingem viver no mundo da normalidade, mas morrem de pavor de uma vingança alada.
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A RESPIRAÇÃO DAS PALAVRAS
**Dos Fundamentos dos Pássaros**

O pássaro é denso mas crispado e tem angústias, medos. Aprendeu a sabedoria de pôr-se a jusante das alamedas e do turvo chão, testemunha das planuras , pouquidões humanas.

Há pássaros óbvios. Outros habitam o peito dos mares e aí parecem-se a peixes e a algas que erram. Os pássaros não deixam tocar-se porque são nus e anunciadores. Raro desfazerem-se das sedas de que são articulados: ponto a ponto. Os pássaros são orgíacos, substantivos, a despeito de seu desarvoramento.

Pássaros são feitos de gritos monossilábicos e pulsam pautados: cascos partindo-se no ar. São o silêncio das claras de ovo, o modo de ser da marcha resolvida dos alados.

Os pássaros expõem-se denodados mas de perfil. Irrompem nas desferidas asas ou as colam ao corpo - depositário das deliberações que exacerbam os arcos, que se dão sempre e quebram-se.

por Maria Elisa Guimarães® (Meg)
(que tem a alma livre)

Ele lia em voz alta a parábola de Gibran: "A violeta e a rosa".
Eu assistia à cena muda, percebendo quando sua voz tremia, quando o canto dos seus lábios esboçavam um sorriso enquanto ele lia, quando as suas mãos apertavam um pouco mais o livro e, finalmente, quando terminava a leitura, percebia o quanto seus olhos brilhavam. Aquilo o emocionava demais. Ele se identificava com a rosa.
Juro que tentei ser rosa, mas as pétalas não se comportam...não se encaixam com a perfeição que deveriam, e os espinhos - tão necessários - me dão comichões. Aí, sendo rosa, fico descabelada e com coceira.
Ele também não suportou ser rosa muito tempo.
Tampouco sou violeta.
Nasci miosótis e vou morrer maria-sem-vergonha.

quarta-feira, 19 de setembro de 2001

SexoAsfalto

Copular no asfalto.
Acoplar ao ato
o amor que vem do alto.
Que importa a negritude
e o calor infernal?
Se no final do gozo, tudo gruda.
Se no final das contas,
entregue às mãos do amante,
até a cor do asfalto muda.
Graci, 1998.

terça-feira, 18 de setembro de 2001

Weelll....
Eu estava sondando os preços dos palmtops (que é a minha próxima empreitada no universo dos gadgets tecnológicos, eu, que não sei programar o videocassete, pretendo escrever na tela de cristal líquido com um pauzinho de laranjeira pós-moderno) quando abriu uma janela totalmente esquisita no meu monitor.
A primeira coisa que imaginei foi que havia feito uma trapalhada e baixado um novo screensaver com uma animação de que até Ele duvida. Uma carta (feito aquelas, amarelinhas, do ICQ - só que bem maior e vermelha) piscava sem parar e uma animação sugeria de um jeito meio ameaçador: abra-me....abra-me...Entre as palavras, uma espiral preta rodava. Catifum.
Muito bem. Beijei a imagem de São Judas Tadeu que carrego sempre comigo e cliquei duas vezes no envelope vermelho. Abriu uma sala de chat. Lá estávamos, eu e ele.
- Bem vinda...
- Oi, tudo bem? De onde vc tc?
- Não vem ao caso. Que bom que você aceitou meu convite para o chat.
- Legal, ficaria melhor se você se apresentasse.
- Claro, me desculpe...eu sou O Outro.
- Francisco Cuoco?
- Hehehe..vc lembra, é? Também gostei dessa novela. Mas não sou o Cuoco, não.
- Ok, continuo na mesma. Vc é o outro quem?
- O Outro. O transgressor da sua ordem. O da esquerda, o da mão que segura o garfo. O distante, o exilado, o diferente. Compreende?
- Tá insinuando que é o Capeta? (nem devia escrever essa palavra, que não é de bom agouro, é que nem "azar", que a gente não deve falar nem escrever, pra ver se risca do mapa)
- Acho que me dão muitos nomes por aí, mas não atendo por nenhum deles. Digamos que eu seja só o Outro. Curiosamente, é em mim que muita gente faz morada de seus capetas.
- Tô entendendo. Não sou burra nesses assuntos, sabe? Minha avó é Rosacruz, meu tio é pai-de-santo. Eu mesma ando num canto e noutro. Diga lá, vc me procurou pra que? Aliás, interessante essa sua abordagem via Internet.
- A Rede não deve ser para todos?
- De fato. Não ia ser você um excluído, um sem-acesso, um sem-tela.
- Absolutamente. Estou aqui por gentileza. Realmente, não tenho acesso - livre, gratuito, nada disso. Meu território é a própria exclusão. Imaginei que você soubesse disso. Mas tenho percebido que ultimamente, o que aparece no seu monitor vira sua realidade e julguei (ops) que esta seria uma forma eficiente de chamar a sua atenção.
- Bacana, boa estratégia. Agora, vamos à vaca fria. Me diga, pra que você quer minha atenção?
- Quero ser integrado. Quero que você faça um esforço para relativizar as diferenças que nos separam, para cooptar uma parcela do que represento. Quero que você abra mão de algumas certezas, que questione-as à luz das possibilidades que venho oferecer, quero que você reavalie alguns de seus conceitos.
- Deixa eu ver se entendi: você quer que eu abra mão de um pedaço de mim, de uma parte da minha história, que eu me desfaça dos valores que levei quase 35 anos pra construir, à custa de muita porrada, você quer que eu deixe de acreditar em coisas nas quais meus pais acreditaram, em coisas que eu estudei, li e refleti até chegar ao ponto de acreditar, em tudo que é mais precioso pra mim - idéias, filosofias, crenças pessoais, herança - pra ceder espaço pra você??? Que eu nem sei quem é??? A troco de que? Que conversa é essa? Tá me estranhando? Será que você sabe com quem tá falando?
You have mail!
Nova janelinha. Cliquei duas vezes, ato impensado, quase vício.
Notícias do mundo.
Cliquei correndo para a janelinha da sala de chat, procurando o Outro pra ver se dava tempo de uma explicação, uma busca de reconhecimento, uma reavaliação da minha postura, tão irrefletida.
The user "O outro" left the chat.
Cliquei no quadradinho com um X e fechei a sessão. Quem será que era esse outro?
Paciência...bobagem. Outra hora ele aparece e eu penso nisso de novo. Entrei no site da CNN pra saber mais sobre o atentado terrorista, cuja notícia acabara de chegar. Isso sim, merece minha atenção. Dane-se o Outro.

quarta-feira, 5 de setembro de 2001

Medea nunc sum.
Ponto de congelamento, cuja questão persiste através da trêmula fluidez de nossas emoções.
Ninguém sonha imitar Medéia, não se imita o acontecimento, não se pode antecipá-lo, não se pode vivê-lo por procuração: ele produz seu presente, a cada vez singular e, no entanto, a cada vez repetido.
Ninguém pensa em consolar Medéia, cercá-la de uma afeição que repara e reconcilia. Ninguém deveria nem mesmo ousar expressar qualquer tipo de solidariedade com Medéia. Ela não pode fazer mais nada, não nos pede nada, não pede mais nada a ninguém. Ela é Medéia.
Isabelle Stengers
De uns dias pra cá, ele só anda curvado. Não sei se é por algum motivo concreto, físico, ou se é mania, mesmo.
A impressão que dá é que ele procura por alguma coisa bem pequenininha, que se perdeu num vão entre as pedras portuguesas.
Talvez, de tanto dormir na calçada, tenha aprendido a língua das pedras e, ao invés de procurar com os olhos, cata segredos com os ouvidos.
Ele fala sozinho de monte e inventa umas modas que eu considero verdadeiras instalações: amarra sacos de lixo nos respiradouros da calçada, ordena objetos catados na rua com uma lógica que só ele entende e fica olhando pra eles durante muito tempo, cuidando para que nenhum passante distraído esbarre e estrague tudo que é perfeito. Tem dias em que me pergunto se as montagens de coisas, ao lado da banca de jornal, não fazem parte de algum ritual secreto do povo das ruas. Já o flagrei de varinha na mão, andando em círculos ao redor de cacarecos. Sabe-se lá.
À primeira vista, pensei que ele fosse um mendigo como tantos outros. Com a convivência (nos encontramos todos os dias, afinal) fui percebendo que não é só mendicância a sua realidade. Há um viés, ali. Para muitos, pode ser interpretado como alienação e loucura. Até mesmo para mim, era disso que se tratava, até hoje.
Mudei de idéia.
O caso é que estava comprando empadas numa carrocinha aqui perto de casa, quando ele passou. Percebi seu olhar para a vitrine do carrinho e depois, para o vendedor. Por fim, pararam em mim.
Impossível ficar indiferente. Ele murmurou alguma coisa ininteligível, que eu compreendi - claro, sou cristã, decente, compassiva, politicamente correta e ainda por cima, trabalho em ONG - como um pedido.
- Dá uma pra ele - disse ao vendedor.
Feito.
Ele olhou fixamente para a empada por um tempo, como se avaliando a conveniência de comê-la naquele momento e ali. Depois olhou pra mim, por uns minutos. Impossível descrever o que eu vi.
Era a mim mesma, que eu observava. Não achei estranho ser o homem encurvado à minha frente. Aposto que ele também não achou estranho ser a mulher empertigada.