sábado, 2 de janeiro de 2016


O ano novo bateu à minha porta trazendo com ele um jovem tímido, desajeitado, conhecido há anos mas esquecido de propósito, devido ao medo que sempre tive de sentar-me com ele para uma conversa.

Veio como vinha antes – empoeirado, esfarrapado, desalinhado – porque se fosse de outro modo não faria sentido. Fiz menção de explicar o motivo da minha fuga e abandono. Coisa idiota, parei a tempo e calei. Ele sabe de fugas e buscas, de abandonos e silêncios, de desepero em terras arrasadas, solidão e demora, desvairio e ilusão, ele sabe o quanto custa entrar em castelos sem saber o que fazer lá dentro. Sobre essa jornada tenho aprendido com ele, o Parsifal.

Parsifal bate à minha porta e eu abro, sem saber se mereço. Ele vem em retorno, outra e outra vez, me ensinar o que custo a aprender – e me diz, Graciela, faça as perguntas.

Parsifal me deixa recostar a cabeça no seu ombro e me acolhe, como fez com o rei ferido pela lança do desânimo. Parsifal colhe minhas lágrimas numa bolsinha e as guarda como relíquias: aqui mora uma alma. Parsifal pousa a mão sobre meu estômago, esse que aperta sempre, que anseia. Parsifal voltou hoje de manhã, às 5:47, pra me perguntar: onde dói? Dói no peito, eu respondi. Parsifal já sabia, mas perguntou assim mesmo. Sua generosidade me apaziguou e me garantiu um sono profundo, reparador. Na minha cabeceira, há sempre um cálice, porque eu acordo com sede. Comecemos de novo.
Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante.
Ele é nagual, hiperconectado, ela é tupinambá e cabocla. Ela fala com bichos e gentes de todas as línguas e brinca com robôs e admira pássaros canoros e drones silenciosos com puro encanto, porque puro encanto é sua medula. Índio, paira entre fogos coloridos que vêm do alto e os movimentos das terras, os fluxos das águas, com penas de pavão em suas mãos, pai/mãe/irmã de todos, toca telas e faz os mundos revirarem sobre dobras ainda desconhecidas. Ela não espera, ele tem esperança, ela não dá bola para o uso vulgar das palavras, porque as palavras, todas elas, com todos os seus limites, servem para alguma coisa – ainda. Ele aguarda, impávido como na canção, o grande silêncio que se aproxima. Apenas as ondas restarão murmurantes para ninar uma humanidade de pele frágil, recém-nascida, olhos semi-abertos, depois do aion no escuro, amorosa. Restarão as ondas murmurantes entre fronteiras de países, ninando multidões nos fluxos. As ondas murmurantes entre satélites e antenas, ninando conexões/sinapses nos ventos. As ondas murmurantes no vermelho quente sanguíneo, ninando pulsares lilases e pulsões de vida. Um murmúrio ressona ainda quase imperceptível, sob o manto de partículas em Pequim, sob o rugido covarde das barragens, das serras, sob a tagarelice geral do pensamento e das bocas e dedos desesperados nesse zênite. Extrapolaremos, o índio assegura. Eu sei. Acredito no que desce das estrelas.
1/1/16
Em 2016 eu quero tensegridade, posturas incomuns, silêncio interior, empáfia sob controle, ativismo quântico e meus bichos sempre por perto.

O show da Luna

Muitas vezes, quando me deito para dormir, na tela dos meus olhos fechados aparece uma lua cheia. Ela baila no alto do canto esquerdo do meu cinema particular, permanece quieta enquanto os traillers se sucedem – dia bom, dia ruim, e por quê? – e eu, caindo de costas no escuro, esqueço que existe um botão para trocar de canal. Muitas noites eu durmo à luz dessa lua plácida, paciente no seu canto, enquanto as imagens sem controle pipocam, crescem e fenecem. Essa lua me nina, seus murmúrios me trazem vozes atemporais.

Quando criança, eu cantava para a lua canções ensinadas pela minha avó – sobre pastorinhas, estrelas, amores. Cantei sem vergonha por muitos anos, mas acreditei nos aplausos e me deixei magoar pelas críticas. Cantei bonito e cantei desafinado, cantei letras que eu não entendia, cantei em línguas inventadas. Às vezes, alguém atordoado em casa me pedia para parar, ou para cantar baixinho. Então aprendi a cantar baixinho.

Mais adiante, enquanto a lua gerava em mim anseios novos, passei a cantar mais dentro da minha cabeça. Funcionava quase sempre, mas quando a angústia tomava corpo, eu fechava a porta do quarto e acompanhava o Freddie Mercury em todos os seus tons. Eu e Mercury fomos um, under pressure, finding somebody to love, spreading the wings to fly away, desistindo de viver para sempre, ousando amar para sempre. Para algumas perguntas de Mercury, eu tinha respostas. Me orgulhava disso.

Veio o tempo em que a lua marcou mais que concretamente seu ciclo e passei a murmurar mantras para pequenas criaturas que vieram me ensinar sobre milagres, magia e a extrapolação de limites. Minha matéria – mater – fez sentido integralmente e a lua banhou noites insones e felizes. Embalando, chamei os nomes de Govinda, Gopala, Krishna. Sob a luz tênue que sempre se insinuou pelas janelas das casas em que vivi, testemunhei a paz plantada nos berços.

Em um momento de aparente interpolação das fases lunares, de confusão sobre o ciclo, fui buscar a ordem no caos e cantei assumidamente de novo, como aos três anos de idade: no coral do Instituto Philippe Pinel, eu fiz sentido. Cantei no Natal, cantei nas igrejas, cantei no hospital psiquiátrico. Experiências míticas, imaginando all people com John Lennon e praising the Lord como se faz nas plantações da República dos Camarões. Descobri que em grupo dói menos desafinar. Descobri que em grupo minha voz se fortalece. Descobri que em grupo faço mais bonito – e aí passei a esperar menos o aplauso e a receber quase serenamente as críticas.

Faz anos que eu não canto assumidamente. Sempre que posso, ensaio - agora com novos amores no colo, em tardes que reservo para encontrar quem eu sou, entoo os antigos mantras para ninar e a trilha do Show da Luna para alegrar. A Luna alegra sempre. Me vejo cercada de meninas – as pequeninhas e as jovens, as mães e as avós - que me ensinam a ser grande. Depois que a algazarra arrefece, quando volto para o meu cinema – dolby stereo, particular - a lua se insinua, a princípio silente. Paira quieta e incandescente no canto esquerdo do meu lobo frontal, antecipando (às vezes com um ínfimo de nota) qual é a próxima música e me incitando a cantar em público, sem dor maior. Começo a esboçar um solfejo – é Martinho da Vila. A vida vai melhorar.
Feliz Natal, feliz 2016.
Em 24 de dezembro de 2015.

Lua cheia em Gêmeos. Há 28 anos eu celebrava a lua cheia de novembro vestida de branco, no alto do outeiro, firmando aliança. Tanto branco, tanta lua, tanta promessa - mas eu era solar.
28 anos são quatro ciclos de concretude. Na madrugada, olho para a lua da janela do avião, voltando da terra da Frida Kahlo, hoje muito mais conhecedora das dores que atravessam as mulheres. De preto, sem luto, celebro a liquidez que permite a renovação de sonhos. Alquimicamente, encontro a vida no dissolve/coagula. Olho para o céu em rubedo, e realizo o quanto sou lunar. Me tornei senhora, e essa constatação me satisfaz.
Em 25 de novembro de 2015.
“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar; só assim é possível mudar a realidade.”
Faz muito tempo que as palavras de Nise ressoam no meu recorte de mundo. Com ela, aprendi que aquilo que chamo de realidade é uma trama – um amarrado de fiapos daqui e dali, do ontem e do amanhã, uma tapeçaria na qual meu olho finge que acredita. Nem sempre o desenho me apraz, mas quando vem o desgosto a indignação é o remédio, como a Nise diz. Navegar contra a corrente, perseverante.

Em dias de indignação com o presente, olho para o futuro. Já fiz desse hábito meu ofício. Um dia, troquei o ofício pelo sacrifício, num gesto deliberado de compromisso com o mensurável – mas pretendi, nesse gesto, um fazer sagrado, como todos os sacrifícios deveriam ser. Hoje, olhar para o futuro é meu sacrifício indignado.

Três quartos de volta de Saturno depois, tudo faz sentido. Ainda me encanta a polifonia das estrelas – mas quando olho para o futuro, vejo um único caminho possível: o do afeto. Amigos olham junto, sentamos em multidões de indignados, comungando em sagrados ofícios, o afeto se estende além-muros, além-fronteiras, além-mar, além-órbitas. O mapa do futuro está sendo rabiscado em margens.

Esta semana toda, Dra. Nise é homenageada na FLUPP. Contagiemo-nos. Que possamos nos reinventar com os poetas nas condições raras que o navegar contra a corrente exige, nas palavras da Nise: espírito de aventura, coragem perseverança e paixão.
Eu não gosto de segundos cadernos, de cadernos especiais, não gosto de coisas gourmets, não gosto muito de moda que aparece em jornal, nem de espaços descolados. Mas eu adoro a coluna da Ana Cristina Reis. Ela fala comigo.

A Ana Cristina hoje escreve sobre Stephen Hawking, cogumelos e direitos das mulheres. Tudo do meu gosto. Escreve também sobre uma ignorância publicada no Journal of Sexual Medicine, um estudo que relata a depressão pós-sexo. Que pena, que bobagem. Não existe depressão pós nada. A depressão é. Tem gente que se distrai com algumas coisas e depois reencontra a depressão. Aí chama de pós. 

A depressão é um deserto de poeira que levanta com certos ventos e assenta em certas calmarias. A depressão é um deserto onde neurotransmissores passeiam em caravanas. Eventualmente eles estacionam em oásis e bebem chá sob céus estrelados, e aí os ventos trazem nuvens de purpurina,
neurotransmissores dançam alegres num Diwali no deserto. Mas o deserto está, ele não é pré nem pós. Como Lilith, habitante do deserto desde sempre, para quem não faz sentido Stephen Hawking, fim do mundo, cogumelo ou direitos - para quem tudo sempre esteve onde deveria.
Não existe mais estação, o tempo é todo mudança. Há vinte e um anos ouvi sobre isso, sobre um tempo em que tudo que nos restaria seria o fazer das mãos, um futuro feito à mão, é disso que se trata o hoje. Que sejamos atentos ao que passa – mais que o tempo, fluxos e espasmos quase invisíveis, para os quais a maioria dos meus parceiros humanos não liga.

Em plutão há geleiras exóticas, uma sonda chamada novos horizontes envia fotos de glaciares e neblinas que sugerem mudança do tempo. Há anos olho para Plutão – nada de Sputnik me assombra. O tempo de plutão é o tempo do meu pulso, acordo e durmo ciente deste minúsculo longínquo fazendo sombras sobre meus dias de sol e noites de lua, sobre um mercúrio febril que se disfarça de plácido desde que cheguei aqui, há quase cinquenta anos. 

Simples assim – não há placidez nos gelos de plutão. Não é só sobre os meus cabelos que esse vento sopra, não é so os meus cílios que ele congela. Do mesmo jeito que a morte, o frio de plutão nos move a todos – pessoas, samambaias, sonhos e formigas. Que sejamos atentos ao que passa - no meio do mundo, um calor senegalês em tempos de sibéria. Isso é raro, sejamos atentos. É tempo de fazer o pão, cuidar das miudezas, fritar bem um ovo e admirar-se, beijar os velhos, honrar a mãe. É tempo de morte e isso não deveria assustar. Em tempo de morte, tratemos de coser bem as mortalhas e cavar buracos na terra como úteros, porque nas massas de tecidos em terra úmida tudo é germinar.

É tempo de plutão com suas neblinas familiares – retratos de complexidade já não deveriam causar espanto. Cuidemos do pulso, acolhendo expansão e retração como acolhemos o sono, a fome, a saudade: no melhor dos dias, satisfazendo-nos com a simplicidade. No pior, olhando para o céu com esperança.

Avesso do bordado

Muitas das coisas importantes - das mais importantes - que aprendi na vida, aprendi com a minha avó.
Ela me ensinou a dar nó na linha do bordado.
A fazer o arremate.
Me ensinou que o bordado perfeito tem um avesso bonito.
Ainda não consigo por em prática essa última lição.
Sei fazer nós e arremates,
mas meu avesso é cheio de erros.
Por pressa, deixo buracos, eu pulo pontos e às vezes, negligente,
largo restos de fios, linhas soltas, em trechos onde poderia haver outros finais.
Deixo emaranhados.
Sei que eles estão lá, mas me falta a sabedoria para voltar atrás,
desfazer pontos e cerzir de um jeito mais bonito.
O tempo urge, me ilude, e assim vou postergando o capricho do avesso.
Esse tempo - tão meu amigo e tão cruel.
Quero parar o tempo pra alinhavar um declaração de amor por ela.
Mas a linha continua, a linha do tempo - cretina - não me deixa assumir essa tessitura da despedida.
A linha vai, entra e sai dos meus tecidos enquanto ela também se vai,
calada como nunca.
Eu queria poder sentar ao lado dela e pedir que não fosse - que voltasse atrás,
que me ensinasse tudo de novo, porque eu não aprendi nada.
Também queria pedir que ela fosse, porque sei que a bordadura não tem fim e ela tem mãos habilidosas.
Eu queria saber fazer um avesso bonito.